Nas matas, nos rios ou em combate, mulheres tiveram participação ativa na revolta popular da Cabanagem
Eliana Ramos Ferreira
A bordo da escuna Bela Maria, o primeiro-tenente Joaquim Manoel d’Oliveira e Figueiredo fazia uma varredura pelos arredores do rio Carnapijó, na Vila de Cametá, no Pará. Estava atrás dos rebeldes do levante que ficou conhecido como Cabanagem, e pretendia salvar os cidadãos que estivessem à mercê deles. Conseguiu prender pai, mãe e filho de uma só vez, conduzindo-os a Belém. Portando uma arma, Raymundo Hilário, líder dos cabanos, foi ferido e faleceu 48 horas depois. Mas no relato do tenente, em um ofício de 1836, quem ganhou destaque foi sua mãe: “Margarida de Jesus: mulher do antecedente foi presa por ser clamor geral, de que ela é tanto ou mais ferina do que o marido e o filho”.
Margarida de Jesus não era uma exceção. Muitas mulheres participaram ativamente daquela revolta social, que teve início em 1835 na província do Pará, norte do Brasil. Ao longo de cinco anos de batalhas, a Cabanagem alcançou vilas e povoados distantes, chegando às fronteiras internacionais com a Guiana Francesa, a Venezuela e o Peru. Os moradores levantaram-se contra a situação de miséria generalizada na província, na luta por liberdades e direitos, inclusive a terra. Havia um viés étnico na revolta, e uma profunda aversão ao mandonismo branco e português. Entre os participantes estavam lavradores, fazendeiros, criadores e proprietários, carpinteiros, carpinas, alfaiates, ourives, sapateiros, seringueiros, pedreiros, militares, vaqueiros e sem ofícios. Também entraram no movimento amazônico indígenas, como os muras e os mundurukus, além de tapuios (como eram chamados os indígenas que haviam assimilado outras culturas), mestiços e pretos, africanos e nascidos no Brasil, escravos e libertos. Todos ficaram conhecidos como cabanos.
Derrotado sucessivamente pelos insurgentes, o governo regencial nomeou para presidente do Pará o general Francisco José de Sousa Soares de Andréa. Com a missão de reprimir o movimento, ele não deu trégua aos rebeldes, combatendo-os num conflito sangrento. Estima-se que entre 30 mil e 50 mil pessoas pereceram antes que o Império brasileiro se consolidasse na região.
Os estudos sobre a Cabanagem alternam silêncios e inquietações quanto à participação feminina no movimento, quase deixada de fora da história. Em alguns documentos, porém, elas são citadas. É o caso de um ofício de agosto de 1836 escrito por José Francino Alves, comandante militar da freguesia de Igarapé-Mirim. No documento ele informa ao presidente da província, Francisco José Soares de Andréa, que prendeu cinco cabanos ao longo do rio Meroê, e diz que durante a caçada aos rebeldes pela mata, pelos campos e rios encontraram “algumas mulheres ocupadas em fabricar pequenas porções de farinha” –
supondo que fosse “para fornecer a alguns malvados, que por ali ainda vagueiam escondidos”.
Em outro ponto do Pará, na Vila de Melgaço, ilha de Marajó, o comandante militar expôs ao presidente da província, desta vez Bernardo de Sousa Franco, as dificuldades enfrentadas para limpar a vila e seu entorno, infestados de cabanos. No ofício, de 1839, ele destaca a rede de comunicação criada pelos rebeldes, com práticas de informação e contrainformação. Segundo ele, as mulheres tinham importante participação nessas táticas, anunciando quando as expedições legalistas estavam a caminho.
Muitas esposas acompanharam seus maridos cabanos. Famílias inteiras embrenharam-se na floresta, nos rios e igarapés. Em dezembro de 1838, o rebelde Manoel Antunes, tambor do Regimento de Milícias de Macapá que desertou das tropas legais para unir-se aos cabanos, apresentou-se na Vila de Chaves, no Marajó. Estava com sua mulher e seis filhos menores, de ambos os sexos. Do outro lado da província, na Vila de Santarém, nos rios Aritopera e Cabeça de Onça, foram presos nove cabanos e 30 mulheres, além de crianças. Com o grupo foram apreendidas 20 armas de fogo e grande porção de farinha.
Mulheres negras, tanto escravas quanto livres, fizeram sua opção de luta. Algumas aderiram às tropas cabanas. Em setembro de 1839, o tenente Domingos José da Costa, comandante militar da Vila de Monte Alegre, oeste do Pará, enviou ofício ao comandante da expedição comunicando que “no número das mulheres aprisionadas no rio Curuá veio Maria Lira, mulata, e desconfiando eu ser cativa, a mandei conservar em depósito até verificar-se se com efeito era, ou não: agora sei pela boca própria ser escrava de Fernando de tal = morador em Macapá”. Quando escreve “no número das mulheres aprisionadas”, o comandante dá a entender que havia várias vagando pelas matas e pelos rios. E estariam sozinhas, pois o documento não relata prisões de cabanos homens. A mulata Maria Lira despertou a suspeita de ser escrava porque a Cabanagem também era uma ameaça à propriedade privada. Acabou devolvida ao seu proprietário.
No front direto das batalhas, em meio aos confrontos armados, havia mulheres. A incursão das tropas legalistas pelas matas da localidade de Jaguarary, em julho de 1836, encontrou número significativo de cabanos. A luta sangrenta deixou dois soldados feridos, dois cabanos mortos e “uma cabana ferida”. Elas acobertavam cabanos e escondiam armas em suas casas, contribuindo para as investidas e as estratégias do levante. D. Maria da Conceição, segundo um ofício enviado ao presidente da Província em 1838, deu abrigo ao “malvado” José Luís, “que tem entrado em todas as revoluções desta Província e que ainda conserva muitos roubos em casa de Maria da Conceição, onde foi preso”.
Em setembro de 1835, Belém já estava em poder dos rebeldes e o governo iniciava um cerco naval à cidade, com fragatas, brigues e corvetas ancorados na baía à sua frente. O líder cabano Francisco Pedro Vinagre havia sido preso no porão da fragata Campista. Com a importante missão de tentar libertá-lo, D. Bárbara Prestes, viúva do primeiro-tenente da Armada, Alexandre Rodrigues, subiu a bordo da embarcação. Era uma boa escolha para aquele papel, pois famílias inteiras, em fuga, buscavam abrigo junto às forças legalistas
aquarteladas nos navios. Ela seria apenas mais uma senhora honesta que necessitava de proteção contra os desmandos dos cabanos. Quem poderia suspeitar da viúva de um militar que buscava refúgio, tentando escapar da desordem instalada na cidade pelos “intrusos”?
Libertar um dos líderes do movimento exigia o planejamento de estratégias, ações militares e negociações de resgates, que numa guerra geralmente cabem aos homens. D. Bárbara incumbiu-se da arriscada missão e não decepcionou. Subiu ao navio carregando uma alta quantia em ouro e prata para recompensar auxiliares e facilitadores da fuga de Francisco Pedro Vinagre. O líder cabano já tentara escapar inúmeras vezes das tropas do governo, sempre em vão. Daquela vez, uma mulher poderia triunfar onde homens haviam falhado.
Do outro lado da batalha, mulheres também tiveram participação ativa: figuras femininas da elite colocaram seus recursos à disposição do governo imperial para melhor aparelhar as tropas legalistas em face dos grupos cabanos. Cederam barcos, cavalos e outros bens. Elas temiam perder os seus privilégios e propriedades, uma vez que muitos terrenos foram confiscados pelos revoltosos.
Na lista “Relação de cavalaria que foram cedidas para a nação”, de dezembro de 1836, cinco mulheres fazendeiras da ilha de Marajó repassam 36 animais para as tropas. Esse gesto de auxiliar os legalistas demonstra fidelidade ao Império e uma opção política de combater a Cabanagem, vinda de proprietárias muito ricas: na ilha havia grande concentração de fazendas especializadas na criação de cavalos, bois e búfalos.
Seja na frente de batalha, embrenhando-se nas matas, navegando por rios em canoas, acompanhando seus maridos, filhos, sobrinhos e amigos, seja simulando um pedido de refúgio em navio do governo imperial, abrigando cabanos ou passando informações estratégicas, as cabanas ajudaram a escrever essa guerra amazônica. E, aos poucos, começam a entrar para a história.
Eliana Ramos Ferreira é professora da Escola de Aplicação da Universidade Federal do Pará e autora de “A presença feminina no Pará insurreto”. In: NEVES, Fernando Arthur de Freitas (org.). Faces da história da Amazônia (Paka-Tatu, 2006).
Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/guerreiras-da-amazonia - Acesso em 07 de Outubro de 2015.
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