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quarta-feira, 22 de março de 2023

O grande debate de Lampião com São Pedro, de José Pacheco

 Para me certificar 

a morte de Lampião 

arrumei o matulão 

andei pra me acabar 

Não escapou-me um lugar 

o Brasil ao estrangeiro 

percorri o mundo inteiro 

procurando a realeza 

até que tive a certeza 

da morte do cangaceiro. 


Andei nas areias gordas 

pilão sem boca e macumba 

as ribeiras de cazumba 

estas eu remexi todas 

passei nas várzea das poldras

 fui à baixa da fulia 

levei uma companhia 

deixei no bico da pata 

passei nas brechas da gata 

dormi na boca da gia. 


Fui à Serra do Cambão 

desci na jumenta prenha 

mandei Chico Tomás Lenha 

no engenho de Felipão 

Pindoba de Damião 

fica perto da furada 

lá deixei um camarada 

caminhei mais légua 

dormi na baixa da égua 

perto da Tábua Lascada. 


Depois eu fui à quinzanga 

o engenho de seu Melo 

subi para o birimbelo 

cheguei na chã da munganga 

treis cassetes de zé panga 

já fica do outro lado 

fui ao cambito quebrado 

do rodete de pinheiro 

deixei o meu companheiro 

na bargada dum sevado


Passei na Chã da Risada 

desci na fazenda mole 

fui à usina do fole 

de Bertolina Pelada 

segui pela mesma estrada 

do alto da geringonça 

do tapado do Mendonça

 puxei para Virador 

e mandei um portador 

dormir na boca da onça. 


E atravessei os mares 

montado em um planeta 

que ao som de uma trombeta 

vinha descendo dos ares 

visitando aqueles lares 

terra de santos e fadas 

naquela mesma jornada

 encostei no arrebol 

cheguei na terra do sol 

na casa da madrugada. 


Ela me deu um abraço 

prestou-me bem atenção 

mandou chamar o verão

 no reino do mestre espaço 

depois chegou o mormaço 

e saiu muito vexado 

porque estava ocupado 

no palácio da manhã 

tratando da sua irmã 

mulher do vento gelado. 


Continuei a viagem 

com boa capa de luva 

porque a terra é de chuva 

e mora dona friagem 

seu palácio era na margem 

do rio major relento 

descansei no aposento 

da velha seca puxada 

nesta noite a trovoada 

deu uma surra no vento. 


No reino da branca aurora 

encontrei a brisa mansa 

que vinha trazer lembrança 

à princesa deusa flora 

a neve aquela hora 

em sua alcova dormia 

depois o sol lhe surgia 

desfazer-lhe do regaço 

enquanto pelo espaço 

a neve branca corria 


P’ra saber de Lampião 

qual foi a parada sua 

subi à terra de lua 

escanchado num trovão 

encontrei um ancião 

velho, barbado e corcundo 

que vinha do fim do mundo 

me viu e foi me contando 

que viu São Pedro açoitando 

um espírito vagabundo 


Chegou no céu, Lampião 

a porta estava fechada 

ele subiu a calçada 

ali bateu com a mão 

ninguém lhe deu atenção 

ele tornou a bater 

ouviu São Pedro dizer: 

— Demore-se lá. quem é? 

estou tomando café 

depois vou receber 


São Pedro depois da janta 

gritou por Santa Zulmira: 

—Traz o cigarro caipira 

acendeu no de São Pranta 

apertou o nó da manta 

vestiu a casaca e veio

 abriu a porta do meio 

falando até agastado: 

— Triste do homem empregado

 que só lhe chega aperreio 


Abriu na frente o portão 

ficou na trave escorado 

branco da cor de um finado 

quando avistou Lampião 

mas com a trave na mão 

não temeu de lhe falar 

e disse: — Aqui não se dar 

aposento a gente mal 

senão que entrar no pau 

acho bom se retirar 


Lampião lhe respondeu: 

— Não venha com seu insulto 

você é um santo bruto 

que ofensa lhe fiz eu? 

e mesmo o céu não é seu 

você também é mandado 

portanto esteja avisado 

se não deixar eu entrar 

nós vamos experimentar 

quem é que tem bom guardado 


Você não entre atrevido 

São Pedro lhe disse assim: 

— Ingresso a quem é ruim

 nesta porta é proibido 

não sabes que sois bandido 

roubador da vida humana 

alma ferina e tirana 

coração cruel perverso! 

como queres um ingresso 

nesta mansão soberana 


— É certo fui bandido 

perverso, estrompa, voraz 

porém, quem foi não é mais 

é mesmo que não ter sido 

mesmo eu sou garantido 

por um provérbio que tenho 

escrito sobre um desenho 

por pessoas elevadas 

o qual diz: — águas passadas 

Não dão voltas a meu engenho 


— Não quero articulação 

você aqui nada tem 

— É como você também 

lhe respondeu Lampião 

é porque do seu patrão 

você transmite um mandado 

eu tenho visto empregado 

sair do trabalho expulso 

sem direção, sem recurso 

por qualquer trabalho errado. 


Ali falou São Bernardo 

Que também vinha chegando 

— Pedro você está brincando 

com este cabra safado? 

vá me chamar São Ricardo 

e São Francisco da Penha 

diga a São Tomé que venha 

e chame São Juvenal 

traga um pau do quintal 

e uma lasca de lenha. 


São Pedro ergueu-se nos pés 

E disse de cara feia: 

— Pra dar num cabra de peia 

não precisa oito nem dez 

e gritou por São Moisés: 

— Vamos dar no bandoleiro 

saltou no meio do terreiro 

até preparar a faca 

gritando: — Quebra uma estaca 

Arranque um pau do chiqueiro 


São Paulo estava no quintal

 mas ouvindo a discussão 

apertou o cinturão 

e botou a faca na cinta 

encontrou Santa Jacinta 

que lá vinha no caminho 

e disse a Santo Agostinho 

arretocendo o bigode: 

— Arreda que tu não pode

 Eu pego o cabra sozinho. 


Porém antes de pegar 

desceu um grande corisco 

jogado por São Francisco 

da porta do quarto andar

 num tremendo ribombar

 um trovão também desceu 

o espaço escureceu 

veio um forte pé-de-vento 

Lampião neste momento 

dali desapareceu 


Poeta tem liberdade 

Sagrado dom da natura 

conforme a literatura 

escreve o que tem vontade 

 também a propriedade 

precisa o dono ter 

pelo menos vou dizer 

se meu espírito não mente 

poeta também é gente 

também precisa comer

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