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quarta-feira, 25 de março de 2020

MULHERES BRASILEIRAS: REINVENTANDO A VIDA, A HISTÓRIA, A CULTURA


Até bem pouco tempo tínhamos que garimpar os rostos e as biografias de mulheres exemplares. Conhecíamos tão pouco delas que vibrávamos diariamente quando descobríamos suas faces ocultadas e esquecidas. Como foi possível tamanha invisibilidade? Nossas identidades e subjetividades ficam truncadas, com uma falta essencial que é a possibilidade de nossa rememoração e identificação como grupo social. Já nos dizia, no final dos anos 1980, a historiadora francesa Michelle Perrot que “no palco da memória, as mulheres são sombras tênues”.
A luta pela igualdade de direitos, desde as nossas primeiras feministas que despontaram na imprensa nos finais do século XIX, como Francisca Senhorina da Motta Diniz, já nos dá uma ideia de que temos uma herança a zelar e um impulso para descortinar muitas referências ainda pouco conhecidas. [...] temos pintoras, escultoras, escritoras, atrizes, cientistas que foram rebeldes e afirmaram-se como protagonistas.
A história das artes plásticas no Brasil tem forte marca da criação das mulheres. Impressiona sua presença e sua originalidade na produção que ganha fôlego a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, se estendendo, em vertentes inovadoras até o presente. Tarsila do Amaral é figura essencial do grito de rebeldia da cultura e da arte brasileira do início do século XX. Um movimento que para além do debate cultural buscou identificar nossos traços de comunidade, a riqueza e multiplicidade das culturas perdidas em um Brasil que ainda se conhecia pouco, mas que buscava dialogar com identidade própria com a cultura, a sociedade, a política que agitava o mundo neste período.
Com uma história muito distinta, com opções estéticas bastante diferentes, e longe dos salões da cultura e da sociedade paulistana e carioca, nos meados do século, Djanira também pode ser rastreada nesta construção de uma identidade de país, multicultural, em que a cor e o traço vão compondo o cotidiano de um povo múltiplo em suas atividades diárias, no trabalho, nas praças, nos bairros, em ritos religiosos. Sua infância na lavoura e a juventude em trabalhos como vendedora ambulante provavelmente marcaram seu interesse em viver o cotidiano do povo que a inspirava. Talvez não seja um exagero pensar no quanto de Djanira existe em cada praça onde encontramos exposta a produção do artesanato e da pintura tão presentes na expressão de nossa cultura popular.
Ainda nas artes, exemplarmente na escultura, ligada ao movimento surrealista, mas não exclusivamente, a escolha por Maria Martins, cuja expressão ultrapassou as artes e a inseriu em atividades como escritora, diplomata, cidadã do mundo, e expressiva figura de mulher que exprime de modo exemplar sua singular “alma complexa”. Suas simbólicas esculturas com seres híbridos, homem e mulher com aspecto de animais ancestrais, colocados frente a frente, sugerem desejos profundos, agressividade e morte. A força do seu trabalho aponta para a necessidade de romper com as dicotomias entre mulheres e homens, tornando-a uma expressiva representante da luta das mulheres pela igualdade de gênero, na atualidade.
Uma cultura também construída em confrontos para romper com um passado de dominação, em que as mulheres são força permanente. É o que nos remete à imagem do rosto forte, sulcado por linhas retas, que se tornou marca da organização e da resistência das mulheres do mundo rural: Margarida Maria Alves. Uma história e uma imagem imbricadas em um longo processo de organização das trabalhadoras rurais, mulheres que carregam uma história de resistência, de um protagonismo em suas comunidades frequentemente contido por relações fortemente patriarcais e patrimonialistas. Expressando a dureza da luta pelo direito à terra e condições de trabalho e produção, passou a simbolizar também a persistência das mulheres no campo, que buscam construir sua identidade como mulheres, como trabalhadoras. Assassinada nas disputas pela terra inspira a Marcha das Margaridas, realizada desde 2006, ocupando a Esplanada dos Ministérios em Brasília, para atualizar a pauta de lutas e dar visibilidade ao cotidiano das mulheres do campo, que integra um processo amplo de organização das mulheres no Brasil.
ROMPER LIMITES, TRAZER O NOVO
O protagonismo e a originalidade de duas criadoras excepcionais se revelaram em um movimento importante de renovação da arte brasileira dos anos 1950 e 1960. Lygia Pape é um nome indispensável dos processos de reflexão e recriação dos parâmetros da arte no Brasil, quando a absorção em nosso país das novas tendências da arte contemporânea gestaram as expressões do Concretismo e Neoconcretismo. Renovação dos caminhos para se pensar a expressão artística, em um país que se mobilizava por alcançar novos padrões de desenvolvimento, cada vez mais urbano, nos anos do pós-guerra, foi peça chave de uma influência que se estendeu em toda a produção cultural posterior. A experiência transgressora de sua arte marcou o universo das artes plásticas no Brasil.
Antes disto, a contribuição de Georgina de Albuquerque, precursora da pintura impressionista no Brasil, primeira mulher a pintar a temática histórica no país. Em 1922, ano de celebração do centenário da Independência do Brasil, apresentou a pintura denominada ”Sessão do Conselho de Estado”, tema próprio, à época, apenas para os homens. Foi a primeira diretora da Escola Nacional de Belas Artes e fundou o Museu Lucílio de Albuquerque onde instituiu cursos de pintura e desenhos para crianças. Mais uma mudança nos costumes da época, demonstrando como mulheres brasileiras romperam barreiras e interdições estabelecidas historicamente. Pensar a produção artística das mulheres nos remete sempre aos movimentos de ruptura necessários em cada época, indispensáveis em cada vida, inúmeras vezes angustiantes em cada destino particular, para que pudessem romper os limites impostos às mulheres. Daí ser desafiador pensar o quanto cada uma destas aqui representadas teceram rupturas diárias para entrar em um mundo público que não lhes atribuía um lugar tranquilo e muito menos cativo. Abrir as portas dos espaços públicos movia estas pioneiras.
[...] no primeiro terço do século XX, Bertha Lutz arregimentava argumentos, mobilizava apoios, questionava a persistência das barreiras à participação das mulheres nas instituições políticas. Em vários países as mulheres já tinham garantido o direito de voto, que por aqui continuávamos sem. 19 Como grandes chaves da participação das mulheres no mundo público a educação, o trabalho e o voto marcaram esta época. A cultura, a escrita e a arte se apresentavam como brechas possíveis. O feminismo, abrindo este caminho no final do século XIX e primeiras décadas do século XX, anunciava que as mulheres almejavam educação e trabalho. Reivindicações que ecoavam no Brasil, trazendo influências e debates que se espalhavam em distintos países. A produção literária e jornalística se alimentava e repercutia as polêmicas sobre o direito das mulheres ao estudo. Francisca Senhorinha da Motta Diniz faz desse campo seu espaço de atuação. Entrar no mundo para além das paredes domésticas exigia, com certeza, ousadia. O que grande parte das vezes significava destoar dos padrões adequados às mulheres. Daí a irreverência de algumas, como Nair de Teffé que, ainda que cercada por relações familiares tradicionais, frequentemente se via socialmente censurada e tolhida. Aventurando-se por uma área ainda hoje tipicamente ocupada por homens, foi a primeira caricaturista brasileira.
Para além do universo das artes, desponta a figura tão singular de Nise da Silveira. Estudante de medicina nos anos 1920, Nise foi a única mulher em sua turma. Destacou-se por uma reflexão original e criativa dos estudos psicológicos, vinculando a arte às necessidades de expressão dos seres humanos aprisionados na esquizofrenia. Suas pesquisas e seu trabalho a tornaram uma referência em todo o campo da psiquiatria e da saúde mental no Brasil, tema tão atual e demandante de uma nova visão de humanidade e, por que não, de novos paradigmas para as políticas públicas.
A expressão pela linguagem escrita nos aproxima de autoras com trajetórias tão distintas, como Carolina Maria de Jesus e Clarice Lispector. Carolina Maria de Jesus, filha de pais analfabetos, negra, foi trabalhadora doméstica, viveu nas ruas e em favela, coletando materiais. Seu livro Quarto de despejo ganhou mundo e trouxe inusitada celebridade e conhecimento de um cotidiano muitas vezes retratado por quem não o vivia. Não era o caso de Carolina. Aliás, pelas mãos de Clarice, também somos levados a refletir sobre o cotidiano. Mas são outros meios, outra linguagem, outra experiência de vida. São vários mundos refletidos em narrativas intimistas que a tornam uma das mais aclamadas escritoras brasileiras. [...]
 O que une estas mulheres é um desejo incontido de vencer barreiras e construir seus canais de expressão. Sobretudo temos mulheres que lutam, ontem e hoje. As que buscam juntar, traçar rumos, definir seus destinos, deixar marcas e caminhos para um mundo com mais igualdade. [...]
GODINHO, Tatau. Mulheres brasileiras: reinventando a vida, a história, a cultura. In: Assis, Maria Elisabete Arruda de; Santos, Taís Valente dos (Org.) Memória feminina: mulheres na história, história de mulheres. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2016https://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2017/03/Mem%C3%B3ria-femininamulheres-na-hist%C3%B3ria-hist%C3%B3ria-de-mulheres.pdf.

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