Até bem pouco tempo tínhamos que garimpar os rostos e as
biografias de mulheres exemplares. Conhecíamos tão pouco delas que vibrávamos
diariamente quando descobríamos suas faces ocultadas e esquecidas. Como foi
possível tamanha invisibilidade? Nossas identidades e subjetividades ficam
truncadas, com uma falta essencial que é a possibilidade de nossa rememoração e
identificação como grupo social. Já nos dizia, no final dos anos 1980, a
historiadora francesa Michelle Perrot que “no palco da memória, as mulheres são
sombras tênues”.
A luta pela igualdade de direitos, desde as nossas primeiras
feministas que despontaram na imprensa nos finais do século XIX, como Francisca
Senhorina da Motta Diniz, já nos dá uma ideia de que temos uma herança a zelar
e um impulso para descortinar muitas referências ainda pouco conhecidas. [...]
temos pintoras, escultoras, escritoras, atrizes, cientistas que foram rebeldes
e afirmaram-se como protagonistas.
A história das artes plásticas no Brasil tem forte marca da
criação das mulheres. Impressiona sua presença e sua originalidade na produção
que ganha fôlego a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, se estendendo, em
vertentes inovadoras até o presente. Tarsila do Amaral é figura essencial do
grito de rebeldia da cultura e da arte brasileira do início do século XX. Um
movimento que para além do debate cultural buscou identificar nossos traços de comunidade,
a riqueza e multiplicidade das culturas perdidas em um Brasil que ainda se
conhecia pouco, mas que buscava dialogar com identidade própria com a cultura,
a sociedade, a política que agitava o mundo neste período.
Com uma história muito distinta, com opções estéticas
bastante diferentes, e longe dos salões da cultura e da sociedade paulistana e
carioca, nos meados do século, Djanira também pode ser rastreada nesta
construção de uma identidade de país, multicultural, em que a cor e o traço vão
compondo o cotidiano de um povo múltiplo em suas atividades diárias, no
trabalho, nas praças, nos bairros, em ritos religiosos. Sua infância na lavoura
e a juventude em trabalhos como vendedora ambulante provavelmente marcaram seu
interesse em viver o cotidiano do povo que a inspirava. Talvez não seja um
exagero pensar no quanto de Djanira existe em cada praça onde encontramos
exposta a produção do artesanato e da pintura tão presentes na expressão de
nossa cultura popular.
Ainda nas artes, exemplarmente na escultura, ligada ao
movimento surrealista, mas não exclusivamente, a escolha por Maria Martins,
cuja expressão ultrapassou as artes e a inseriu em atividades como escritora,
diplomata, cidadã do mundo, e expressiva figura de mulher que exprime de modo exemplar
sua singular “alma complexa”. Suas simbólicas esculturas com seres híbridos,
homem e mulher com aspecto de animais ancestrais, colocados frente a frente,
sugerem desejos profundos, agressividade e morte. A força do seu trabalho
aponta para a necessidade de romper com as dicotomias entre mulheres e homens,
tornando-a uma expressiva representante da luta das mulheres pela igualdade de
gênero, na atualidade.
Uma cultura também construída em confrontos para romper com
um passado de dominação, em que as mulheres são força permanente. É o que nos
remete à imagem do rosto forte, sulcado por linhas retas, que se tornou marca
da organização e da resistência das mulheres do mundo rural: Margarida Maria
Alves. Uma história e uma imagem imbricadas em um longo processo de organização
das trabalhadoras rurais, mulheres que carregam uma história de resistência, de
um protagonismo em suas comunidades frequentemente contido por relações
fortemente patriarcais e patrimonialistas. Expressando a dureza da luta pelo
direito à terra e condições de trabalho e produção, passou a simbolizar também
a persistência das mulheres no campo, que buscam construir sua identidade como
mulheres, como trabalhadoras. Assassinada nas disputas pela terra inspira a
Marcha das Margaridas, realizada desde 2006, ocupando a Esplanada dos
Ministérios em Brasília, para atualizar a pauta de lutas e dar visibilidade ao
cotidiano das mulheres do campo, que integra um processo amplo de organização
das mulheres no Brasil.
ROMPER LIMITES, TRAZER O NOVO
O protagonismo e a originalidade de duas criadoras
excepcionais se revelaram em um movimento importante de renovação da arte
brasileira dos anos 1950 e 1960. Lygia Pape é um nome indispensável dos
processos de reflexão e recriação dos parâmetros da arte no Brasil, quando a
absorção em nosso país das novas tendências da arte contemporânea gestaram as
expressões do Concretismo e Neoconcretismo. Renovação dos caminhos para se
pensar a expressão artística, em um país que se mobilizava por alcançar novos
padrões de desenvolvimento, cada vez mais urbano, nos anos do pós-guerra, foi
peça chave de uma influência que se estendeu em toda a produção cultural
posterior. A experiência transgressora de sua arte marcou o universo das artes
plásticas no Brasil.
Antes disto, a contribuição de Georgina de Albuquerque,
precursora da pintura impressionista no Brasil, primeira mulher a pintar a
temática histórica no país. Em 1922, ano de celebração do centenário da
Independência do Brasil, apresentou a pintura denominada ”Sessão do Conselho de
Estado”, tema próprio, à época, apenas para os homens. Foi a primeira diretora
da Escola Nacional de Belas Artes e fundou o Museu Lucílio de Albuquerque onde
instituiu cursos de pintura e desenhos para crianças. Mais uma mudança nos
costumes da época, demonstrando como mulheres brasileiras romperam barreiras e
interdições estabelecidas historicamente. Pensar a produção artística das
mulheres nos remete sempre aos movimentos de ruptura necessários em cada época,
indispensáveis em cada vida, inúmeras vezes angustiantes em cada destino
particular, para que pudessem romper os limites impostos às mulheres. Daí ser
desafiador pensar o quanto cada uma destas aqui representadas teceram rupturas
diárias para entrar em um mundo público que não lhes atribuía um lugar
tranquilo e muito menos cativo. Abrir as portas dos espaços públicos movia
estas pioneiras.
[...] no primeiro terço do século XX, Bertha Lutz
arregimentava argumentos, mobilizava apoios, questionava a persistência das
barreiras à participação das mulheres nas instituições políticas. Em vários
países as mulheres já tinham garantido o direito de voto, que por aqui
continuávamos sem. 19 Como grandes chaves da participação das mulheres no mundo
público a educação, o trabalho e o voto marcaram esta época. A cultura, a
escrita e a arte se apresentavam como brechas possíveis. O feminismo, abrindo
este caminho no final do século XIX e primeiras décadas do século XX, anunciava
que as mulheres almejavam educação e trabalho. Reivindicações que ecoavam no Brasil,
trazendo influências e debates que se espalhavam em distintos países. A
produção literária e jornalística se alimentava e repercutia as polêmicas sobre
o direito das mulheres ao estudo. Francisca Senhorinha da Motta Diniz faz desse
campo seu espaço de atuação. Entrar no mundo para além das paredes domésticas
exigia, com certeza, ousadia. O que grande parte das vezes significava destoar
dos padrões adequados às mulheres. Daí a irreverência de algumas, como Nair de
Teffé que, ainda que cercada por relações familiares tradicionais,
frequentemente se via socialmente censurada e tolhida. Aventurando-se por uma
área ainda hoje tipicamente ocupada por homens, foi a primeira caricaturista
brasileira.
Para além do universo das artes, desponta a figura tão singular
de Nise da Silveira. Estudante de medicina nos anos 1920, Nise foi a única
mulher em sua turma. Destacou-se por uma reflexão original e criativa dos
estudos psicológicos, vinculando a arte às necessidades de expressão dos seres
humanos aprisionados na esquizofrenia. Suas pesquisas e seu trabalho a tornaram
uma referência em todo o campo da psiquiatria e da saúde mental no Brasil, tema
tão atual e demandante de uma nova visão de humanidade e, por que não, de novos
paradigmas para as políticas públicas.
A expressão pela linguagem escrita nos aproxima de autoras
com trajetórias tão distintas, como Carolina Maria de Jesus e Clarice
Lispector. Carolina Maria de Jesus, filha de pais analfabetos, negra, foi
trabalhadora doméstica, viveu nas ruas e em favela, coletando materiais. Seu
livro Quarto de despejo ganhou mundo e trouxe inusitada celebridade e
conhecimento de um cotidiano muitas vezes retratado por quem não o vivia. Não
era o caso de Carolina. Aliás, pelas mãos de Clarice, também somos levados a
refletir sobre o cotidiano. Mas são outros meios, outra linguagem, outra
experiência de vida. São vários mundos refletidos em narrativas intimistas que
a tornam uma das mais aclamadas escritoras brasileiras. [...]
O que une estas
mulheres é um desejo incontido de vencer barreiras e construir seus canais de
expressão. Sobretudo temos mulheres que lutam, ontem e hoje. As que buscam
juntar, traçar rumos, definir seus destinos, deixar marcas e caminhos para um
mundo com mais igualdade. [...]
GODINHO, Tatau. Mulheres brasileiras: reinventando a vida, a
história, a cultura. In: Assis, Maria Elisabete Arruda de; Santos, Taís Valente
dos (Org.) Memória feminina: mulheres na história, história de mulheres.
Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2016https://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2017/03/Mem%C3%B3ria-femininamulheres-na-hist%C3%B3ria-hist%C3%B3ria-de-mulheres.pdf.
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