O texto a seguir, do professor da Universidade Federal de Ouro Preto, Fábio Faversani, é resultado de um estudo denso e bem fundamentado que põe por terra a propalada tese, segundo a qual a política de “pão e circo” mantinha alimentados e “felizes” os pobres da Roma antiga.
A ideia do Panem et Circenses nasceu sob o Renascimento (...). Os homens livres pobres, segundo essa forma de ver, constituíam uma multidão inútil. Sua maior parte era composta por analfabetos improdutivos, que tinham uma vida segura graças às redistribuições promovidas pelos ricos e pelo Estado. Vistos assim, os pobres romanos só eram notados como a massa de grosseiros brilhantemente controlada pelas elites através de sua política do Panem et Circenses. A massa, alimentada e divertida, tornava-se além de inútil, inofensiva: grande conquista dos gênios políticos romanos...
Buscaremos aqui recolocar a questão das condições de vida dos pobres. É fundamental que fique claro que a realidade vivida pelas massas romanas era bem outra. Em primeiro lugar, note-se a insuficiência de ambos ingredientes do Panem et Circenses, no ambiente da pobreza romana, para explicar sua subsistência e ocupação. O trigo era distribuído para apenas uma parcela da população, sendo que o critério de eleição dos beneficiários não era a pobreza, mas a condição de cidadão. Ainda assim, os beneficiários não conseguiam sobreviver com apenas os modestos cinco modii (aproximadamente 21 litros) de trigo distribuídos pelo Estado. Além de o trigo ser insuficiente para alimentar uma família, ele era dado – se muito – a 0,5% da população total do Império. E isso era todo o “pão” que o Estado dava ao povo, já que podemos considerar desprezíveis os alimenta de Trajano/Adriano, por terem se reduzido a um espaço de tempo e uma escala ainda menos significativas. Assim, é quase tão verossímil pensar que esse trigo mantinha o povo alimentado quanto pensar que o salário-família concedido pelo Estado brasileiro possibilite aos pais e mães trabalhadores criarem seus filhos. Não esqueçamos ainda que o trigo tinha que ser transformado em pão. Os pobres não podiam fazer isso em suas minúsculas vivendas de madeira, que não comportavam uma cozinha. Os apartamentos das insulae, pequenos e insalubres, sempre sob risco de se incendiarem, abrigavam sob condições subhumanas boa parcela da população da capital. Tinham que pagar para o trigo ser transformado em pão, como também pelo aluguel (até 2000 sestércios/ano, quando o salário de um trabalhador especializado era de
aproximadamente 3 sestércios/dia), pelo seu vestuário – que não era melhor do aquele que recebiam os escravos do campo -, etc. Muitos procuravam abrigo nos mausoléus da periferia de Roma por não terem como custear o aluguel ou por serem foragidos da lei. Outrossim, a capacidade de público das edificações que sediavam os espetáculos não era bastante ampla para abrigar a todos, aos contrário do que faz supor Frontão, que parecia crer que toda a plebe ali passava todo seu tempo. Desse modo, ainda que os espetáculos fossem permanentes – e não o eram -, matemática e fisicamente seria impossível que a plebe passasse todo tempo no circo.
(...)
As condições de vida eram sofríveis no geral. Isso se explica pelas dificuldades inerentes ao explosivo crescimento pelo qual passou Roma, sem um planejamento urbano satisfatório – moradia, saneamento, abastecimento -, a incapacidade de adquirir gêneros de primeira necessidade (alimentação, vestuário, etc.), mesmo quando eles estavam disponíveis a preços regulares (o que podia não acontecer quando havia as comuns “crises de abastecimento”) e a inexistência de uma política voltada para a mitigação da pobreza.
Assim, fica que a plebe teria que desenvolver outras estratégias de sobrevivência e ter mecanismos de lazer diversos do “circo. Essa breve observação é suficiente para estabelecer claramente que a plebe era um grupo socioeconômico ativo, que lutava por sua sobrevivência e criava alternativas próprias de vida social. Não era um mero parasita do Estado e dos poderosos, satisfeito com os oferecimentos de Pão e Circo, que supostamente seriam suficientes tanto um, quanto o outro.
Assim, seja lá como se considere os pobres romanos, certo é que a visão de Panem et Circenses não é aceitável à luz das informações disponíveis. É preciso admitir que as elites não deram “vida boa” aos pobres. Essa falsa imagem deve ser abandonada. Os pobres desenvolviam atividades que lhes garantiam a sobrevivência e o lazer. Aqueles mecanismos sobrevalorizados pela imagem do Panem et Circenses não eram decisivos para os pobres conseguirem o que comer e com o que se divertir . É possível dizer que a maior parte dessas atividades se dava nas oficinas, nas tavernas, nas ruas, nos prostíbulos... Cabe a nós, historiadores, reencontrar esse universo empurrado para a sombra que os poderosos, do passado, associados aos do presente,
sempre produzem. É preciso descobrir quem eram os pobres antigos e como viviam. Esse compromisso com o conhecimento do passado nos parece especialmente significativo em um país que produz uma pobreza tão profunda e tão extensa quanto o Brasil.
(FAVERSANI, Fábio. A pobreza do Satyricon, de Petrônio. Ouro Preto: Editora UFOP, 1999; p. 49-52)
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